Texto escrito por: Robson Souza.
Ser brasileiro é se questionar com uma certa frequência sobre o que isso significa e quais valores compartilhamos enquanto sociedade, sobretudo, diante das atrocidades a qual a maioria da população tem sido submetida constantemente. Me refiro aqui ao povo negro, que muitos negam sua importância e contribuição para a construção deste país. Assim como ontem, corpos pretos continuam sendo tratados como objetos e inferiores ao ponto de que seu extermínio diário seja naturalizado e tratado como algo banal.
O país da famigerada democracia racial, discurso amplamente difundido ao longo dos últimos séculos por uma pseudo intelectualidade, e que felizmente vem sendo desconstruída por pensadoras e pensadores negros, forçou uma ideia de harmonia racial entre os povos. A tão sonhada democracia se esqueceu, e deixou de lado uma parcela importante do nosso povo, o que garantiu a continuidade da sua exploração e o aprofundamento das desigualdades criando uma existência na precariedade absoluta, só que agora com um certo ar de legitimidade.
O Brasil continuou dividido entre lugar de branco e lugar de negro, e o quartinho da empregada doméstica, preta é claro, é mais uma representação simbólica da nossa eterna escravidão. O jeitinho brasileiro de antigamente, que se referia a uma certa tendência à irracionalidade e cordialidade na forma em que agíamos, deve ser revisitado já que o debate sobre racismo por vezes é atravessado por um discurso moralizante.
A pergunta que eu me faço é de que distorção é esta que faz um povo cordial se sentir no direito de manter um grupo na miséria extrema? O racismo de ontem e de hoje possuem uma série de elementos, e a racionalidade é certamente um deles. Por isso é importante fazer um debate honesto indo além das teorias, e que tenha por objetivo imediato reparar tantos danos, já que o racismo continua reproduzindo suas desigualdades. Enquanto houver um grupo já privilegiado e que segue se valendo da espoliação do povo negro com o único objetivo de garantir a manutenção de suas benesses, combater o racismo em sua estrutura é fundamental e urgente.
Esta é uma das muitas caras do nosso país, e apesar das variantes, esse jeitinho é antes de mais nada, ser racista. Somos uma sociedade alicerçada sobre o racismo, e que mantem até os dias de hoje toda uma estrutura que privilegia certos grupos em detrimento da exploração e segregação de sujeitos racializados. E mesmo que não seja falado de maneira explicita, tudo isso ainda acontece sobre a farsa da superioridade racial.
Se em tempos de normalidade social, ser abertamente racista é algo moralmente e legalmente condenável, é justamente por isso que em nossa sociedade o racismo ganhará aspectos distintos e sofisticados tornando mais difícil combate-lo. A medida que somos socializados numa sociedade profundamente racista, dificilmente não seremos racistas, ainda que isso aconteça de maneira inconsciente, por isso se torna necessário discuti-lo para além das nossas práticas e preconceitos individuais.
Sobre os nossos desafios, eles começam quando nos negamos a entender a gravidade de se construir uma sociedade baseada na exploração racial, da qual os negros foram vítimas e sobretudo da inercia do Estado brasileiro que em momento algum adotou medidas que garantissem algum tipo de reparação pelos danos causados pela escravização desse povo seja em nível político, econômico ou social.
Observar o racismo em nosso país se torna algo não muito simples devido suas ambiguidades, além do fato da nossa síndrome de vira-latas no fazer tentar importar um modelo já pronto do que é racismo e aplica-lo a nossa realidade. Outro elemento dificultador é que enfrentamos um sério problema de falta de acesso à educação de qualidade, e por essa razão talvez não seja eficiente fazer um retorno mais detalhado ao nosso passado histórico.
No entanto cabe dizer que pouco mais de um século da abolição da escravidão, algo recente e que deve ser motivo de vergonha, somado a insuficiência de um debate mais amplo sobre questões raciais e a ausência de políticas públicas de reparação histórica, a população negra que graças aos interesses pessoais da branquitude se tornou um dos grupos mais violentados e vulneráveis da nossa sociedade, continua abandonada a margem tendo que lidar com uma existência extremamente difícil.
O Estado brasileiro segue de olhos fechados para as condições desumanas impostas a população negra, que infelizmente não se encontra muito distante daquela as quais foram drasticamente submetidos num passado recente e que ainda não foi superado. Nossas instituições, que alguns insistem estarem funcionado de forma adequada, parecem atuar em sentido oposto aos interesses da negritude.
Neste caso, “estar funcionando” possui um significado divergente para o povo preto, já que as instituições parecem operar a partir de interesses próprios. Se são nelas que uma parte da população vê a promessa de garantia de seus direitos, entre aqueles sujeitos racializados e marcados como passiveis de exclusão, a situação muda. Encarceramento em massa, negação a direitos básicos como moradia e educação, acesso aos menores salários, extermínio da juventude negra, etc. fazem parte da nossa realidade.
Se em pleno século XXI ainda temos que lidar com os mesmos desafios de outrora, como aceitar uma ideia de democracia burguesa e branca que permite que uma mulher preta seja submetida a trinta e oito anos em condições análogas à escravidão? O racismo tem se renovado e ganhado uma nova roupagem nos dias atuais e com toda a sua sutileza e complexidade tem penetrado e assassinado nossas relações, destruindo qualquer possibilidade de existência digna para o povo negro “que não vive, apenas aguenta”, como cantado por Milton Nascimento.
Enquanto alguns dizem que o racismo não será superado “já que sempre existiu”, outros recorrem a falácia da meritocracia para justificar seu mau caratismo, ambos apontam para uma mentalidade racista e condescendente. Deixar de discutir ou reivindicar nossos direitos não deixam as coisas mais fáceis, pelo menos não para nós! Racistas sonham com a possiblidade de contar com o nosso silêncio eternamente, os que se calam diante da barbárie são cumplices, e eu escolho gritar e confrontar nossos carrascos até o dia em que sejamos verdadeiramente livres.