Viver no Brasil e estar atento ao que acontece a nossa volta tem me colocado diante de uma série de imagens com as quais tem sido difícil conviver. Mesmo provocando certa indignação coletiva, elas deixam de ser uma pauta “relevante” devido a velocidade em que se diluem e por desaparecem das redes rapidamente, dificultando um debate mais amplo e que alcance um número maior de pessoas.
Já é do nosso conhecimento que uma parte significativa da população brasileira, dados falam em pouco mais de cem milhões de pessoas, vivem atualmente em algum nível de insegurança alimentar. Nesse cenário de crise generalizada, a fome ressurge e se alastra rapidamente entre nós, retirando dos brasileiros qualquer resquício de dignidade humana.
Em meio a tanto caos fica difícil eleger uma única imagem que tenha me causado mais pavor, indignação, impotência nesses tempos de crise sanitária, quando muitos de nós demos péssimos exemplos diante de uma tragedia da proporção de uma pandemia. A recusa em usar máscaras, as aglomerações clandestinas, o apoio irracional ao genocida e tantos outros absurdos que eu posso afirmar que nada mais me surpreende.
Este mês a cena de pessoas recolhendo restos de alimentos de dentro de um caminhão de lixo me colocaram novamente neste lugar de espanto. O problema da fome, que em partes havia sido resolvido, voltou a assombrar o país e estimativas apontam que mais de dezenove milhões de pessoas estão em situação de miséria absoluta e passam fome neste momento.
O mais bizarro e paradoxal de tudo isso, é que neste mesmo mês tivemos a informação de que o país bateria mais uma recorde na produção de alimentos. Algo um tanto curioso quando nos deparamos com o preço abusivo dos alimentos e de itens essenciais da cesta básica, e com a volta implacável da fome. Como é possível que um país que produza tantos alimentos seja incapaz de garantir soberania alimentar e conviver tranquilamente com tantos miseráveis e famintos?
Neste mesmo período, um dos maiores programas sociais de transferência de renda e de combate à miséria, o bolsa família, chega ao fim em meio ao agravamento da crise e avanço da fome por todo território nacional. O agronegócio que segue engordando como nunca, é um dos principais responsáveis por retirar comida de nossas bocas, e o ataque aos direitos da classe trabalhadora e a destruição de programas como o bolsa família é a mais rasteira e pura expressão da luta de classes no Brasil.
O que nos leva ao ponto central deste texto que é discutir novamente a relação íntima entre desigualdade e acumulo de riquezas, e mostrar que a fome não é um ponto fora da curva no sistema capitalista. Os que sustentam a acumulação exagerada de riquezas numa das pontas, são os mesmos que agora precisam lidar com a realidade da fome, que clamam por restos de ossos e reviram o lixo numa tentativa desumana de sobreviverem.
O capitalismo segue “dando muito certo” na sua lógica de acumulação, e avança sobre nós sem nenhum pudor em busca de mais e mais lucros. “Matar de fome, de raiva e de sede” são pressupostos indispensáveis desse sistema, e a atual conjuntura tem deixado cada vez mais explícito o papel da burguesia na desgraça do povo brasileiro. Cabe a nós reagirmos aos podres poderes do capitalismo enquanto ainda nos resta alguma coisa.
Nosso capitalismo dependente com suas peculiaridades, não se importa de fazer sangrar e morrer de fome o seu próprio povo. Enquanto a fome cresce sem controle pelo país, o bolsonarismo e a burguesia brasileira caminham de mãos dadas implementando sua agenda liberal e fascista de retiradas de direitos, de desmonte dos serviços públicos e programas sociais, destruindo o pouco que havíamos conquistado. Pagamos o preço por acreditar na conciliação.