O avesso da pele e as sutilezas do racismo.

Imagem: Robson Souza

Minha primeira leitura concluída neste período de tantos absurdos, “o avesso da pele”, nos coloca diante de uma série de experiências e relações que são intermediadas pelo racismo e expressadas em toda a sua complexidade em nosso país, criando arbitrariamente a vida de sujeitos racializados. Todos os dias, seja de maneira direta ou não, somos sistematicamente atravessados pelo racismo estrutural.

Apesar da centralidade dada a violência Estatal, representada aqui pela polícia, o autor aborda questões como a afetividade, solidão e desigualdades provocadas pelo racismo. As sutilezas como isso tudo vai sendo apresentado, indica os riscos ao naturalizarmos falas e comportamentos racistas que tem contribuído para a manutenção desta estrutura que continua nos violentando tanto física, quanto subjetivamente.

As primeiras narrativas que vão sendo apresentadas dão a dimensão de como o racismo tem tensionado para a construção das subjetividades dos personagens. Aos poucos, tanto as sutilezas como os acontecimentos mais explícitos, irão conduzi-los para infernos distintos, deixando claro que mesmo que não nos demos conta ou que tentemos fugir, os efeitos nocivos da racialização se impõe com violência sobre nossos corpos.

Em sua busca pelo passado da família, o narrador nos faz imergir e observar de dentro diferentes materializações do racismo no dia a dia daquelas pessoas. Se recaem sobre alguns personagens sintomas como ansiedade, insegurança, preterimento etc., a morte física é o estágio mais avançado desta violência e como resposta, as vítimas do processo de racialização estão o tempo todo criando estratégias para permanecerem vivas. Os manuais de sobrevivência.

Durante toda a leitura eu me perguntava se era possível experimentar a vida sem a interferência do racismo. Provavelmente, apenas um delírio de minha parte. Não que eu seja um completo pessimista, é que infelizmente a concretude da vida real tem reforçado o oposto. Além disso, a leitura também nos empurra o tempo todo para este lugar de fatalismo, de perigo constante do qual o racismo é o protagonista.

Algo curioso e problemático que me acompanhou durante toda a leitura, foi minha dificuldade em conceber a legitimidade de alguns daqueles personagens. Aqueles que não cumpriam com as minhas expectativas relacionadas a raça, pessoas negras em lugares distintos, não somente de marginalização, causaram em mim certa desconfiança. O que é estranho, já que tenho circulado por este mesmo espaço, o do negro fora do lugar.

Apesar da tragedia e da forma implacável como o racismo se apresenta na obra, em alguns momentos são os personagens que escapam os estereótipos racistas que provocam certo atrito devido a nossa dificuldade em visualizar pessoas negras em lugares incomuns, como o de uma família de classe média, ou que os mesmos sejam possuidores de tão alto nível de capital cultural “legítimo”.

Como sujeito socializado numa sociedade altamente racista em que o racismo alcança níveis de sofisticação e uma complexidade cada vem maior, pensar, ainda que involuntariamente através de uma lógica racista, são coisas que ainda nos aprisiona. O racismo vem contribuindo desde sempre para a construção de um imaginário que nos leva a pensar pessoas negras unicamente em lugares de subalternidade, do qual eu também sou refém.

Para além da questão racial, a obra levanta discussões importantíssimas como a precariedade do nosso ensino e da condição de vulnerabilidade em que a docência sobrevive. Entre os momentos de alívio, eu diria que a relação intima e a crença de um dos protagonistas na importância da leitura. Por fim, destaco o estranhamento e as desordens que as narrativas provocaram em mim e do quanto elas são positivas já que indicam visões a serem superadas.

Infelizmente numa sociedade tão racista quanto a nossa, pode ser que o avesso de nossa pele seja um lugar bem mais seguro e tranquilo para se viver. Apesar de não haver tanto conforto neste tipo de constatação e também da sua impossibilidade, seguimos apostando nos manuais de sobrevivência, enquanto tentamos imaginar e construir um mundo livre de ideais racistas e que a noção de superioridade racial seja superada.

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